“Dos efeitos da água

Por razões evidentes e lógicas, a água foi sempre elemento concitador, à sua beira se congregando toas as civilizações. Onde corre água a vida emerge, das formas mais simples às mais complexas, constituindo sistemas elaborados que estabelecem entre si relações de dependência e, ao mesmo tempo, evoluem no sentido de um aproveitamento cabal das potencialidades criadas.

Foi assim que a humanidade domou os rios para melhor tirar partido das suas águas, regularizando os cursos, abrindo canais, fazendo barragens e açudes. Foi assim que a humanidade buscou a água das nascentes ou mães-d’água e a encaminhou, através de simples encanamentos ou formidáveis aquedutos, para as povoações ou para as urbes onde emergiu as fontes, vitais para o bem-estar das populações. Foi assim, ainda, que a humanidade engenhou formas palpáveis para ligar as margens dos rios, as pontes, para obviar a inconstância dos seus caudais e, outrossim, facilitar o tráfego de pessoas e bens

Toda a várzea do rio Lis, desde as suas nascentes nas Fontes, bem nas faldas da Serra d’Aire, passando pelo reguengo do Ulmar, num percurso de 38 quilómetros até às planuras da costa atlântica, nas Tercenas da Praia da Vieira, é bem testemunho de uma vida laboriosa tecida à volta da água e das formas de aproveitar ou contornar.

Em especial, a cidade de Leiria, outrora povoado e vila dos mais populosos da região a que deu o nome, ilustra de forma eloquente todo esse saber desenvolvido ao longo dos tempos pelos técnicos, arquitectos e engenheiros que, em função das circunstâncias sociais, políticas e económicas ou, simplesmente, das necessidades mais prementes, foram criando as soluções adequadas (ou não) a cada caso, contribuindo com a sua arte para dotar a cidade com as infra-estrutras de que carece para sobreviver. É o caso das pontes, através das quais fluem as pessoas e o trânsito; é o curso do rio, perfeitamente regularizado entre as margens elementarmente calculadas para suportar caudais extremos e, assim, evitar as nefastas inundações que durante séculos trouxeram a urbe em suspenso; e são as fontes, de forma e carácter diverso, mas sempre com o objectivo de servir as necessidades da população, se bem que hoje, com a água distribuída ao domicílio e inquinamento ou simples secagem das nascentes, as fontes estejam em desuso absoluto e sejam apenas elemento decorativo ou simples memória de um bem inestimável à volta do qual a vida se construía.

Todos estes motivos são para populações que os utilizam ou lembram, referenciais num espaço geográfico bem definido, independentemente das utilidades que têm ou se lhes dão com o passar do tempo. Mas a verdade é que meros utilizadores que somos, nem sempre temos consciência da sua importância, passada ou presente, da história técnica e humana que lhes está subjacente, dos condicionalismos que os enformaram, das transformações que sofreram, das voltas e revoltas que levaram, enfim, nem sempre damos conta ou temos noção de que, tais motivos são parte integrante da nossa memória colectiva e do nosso e de que, como tal, devem merecer a nossa atenção, o nosso carinho, o nosso respeito e a nossa consideração.

Foi a essa tarefa que deitou ombros a nossa boa amiga Alda Sales Machado Gonçalves, enunciando de forma exaustiva tais motivos, caracterizando-os um a um, desvendando-lhes a origem e a evolução histórica, anotando deliberações administrativas ou referências documentais, localizando-os na cidade e plasmando-lhes a memória através de ilustrações ou fotografias.

“LEIRIA – as fontes, o rio Lis e as suas pontes” revela-se, assim, um precioso instrumento para conhecer a cidade em particularidades que, especialmente pelo uso rotineiro que lhes damos (ou pela ignorância que temos delas), nos podem passar despercebidas ou até não suscitar o nosso interesse imediato. Estamos certos que, após a leitura deste trabalho, ninguém ficará indiferente à Fonte dos Namorados, procurará a Fonte do Pocinho e quererá pedir a chave a D. Maria do Fétal para entrar nos balneários da Fonte Quente. Não faltará gente que se questione onde teria existido a Ponte dos Defuntos ou a Ponte da Mota ou busque mesmo os contrafortes das Fontes dos Três Arcos, provisoriamente substituídas pela famosa Ponte do Pau. E se hoje, com a vaga de desportos radicais que por aí vai, se souber que em 1936, Frederico Pinheiro <<fez a memorável navegação do Rio Lis, desde o açude junto à actual Ponte da Fonte Quente até às Tercenas>>, na costa do Atlântico, não faltará quem o queira imitar e voltar a cometer a proeza de ir de barco – pelo rio! – de Leiria à Praia da Vieira (atenção aos açude e aos… efluentes!).

Tudo isso fica a dever a D. Alda Gonçalves que, estudiosa empenhada e investigadora das coisas de Leiria, tem tido a subida preocupação de escrever e, com isso, concitar o interesse das instituições para publicar os seus trabalhos de inquestionável importância e fidelidade histórica. São para ela, pois, os maiores encómios, não sendo os menores para a Junta de Freguesia de Leiria que promoveu esta edição.

Sobretudo porque Leiria fica mais rica quando se aviva a sua memória!”

Prefácio por Carlos Fernandes na obra de Alda Sales Machado Gonçalves, LEIRIA – as fontes o rio Lis e as suas pontes, Junta de Freguesia de Leiria, Folheto Edições e Design (2010)